Autor: Tiago Lobo-Dos-Santos
Alumni Teach For Portugal (Mentor TFP 2019-2021)
“Toda a criança precisa de alguém que se preocupe irracionalmente: um adulto que tudo faça por ela – dizia Bronfenbrenner. Sendo este mentor extremamente importante para o desenvolvimento bem-sucedido de qualquer criança, adquire preponderância acrescida quando as crianças se encontram em contextos de múltiplas desvantagens, como socioeconómica e étnica. A criança que manifesta insucesso e se encontra nestas posições navega entre sistemas de desenvolvimento – família, comunidade, escola, amigos, sala-de-aula, rua, etc. – extraordinariamente desalinhados. Eles não convergem uns com os outros no sentido do sucesso – educativo, emocional, comportamental e do bem-estar.
“Acordar e ir para a escola é natural para a maioria de nós” é uma ideia implícita da estrutura de ensino que quero explorar. Primeiro, a ida para a escola não é “natural” – cada ser humano nascerá com um “chip” inscrito que lhe ordena o ato de acordar às 7h30m para ir à escola? Segundo, a “maioria” não descreve todos os casos possíveis duma sociedade – oculta-se um conjunto de casos “minoritários”. Terceiro, quem é este “nós” que aparece no discurso?
Ao aceitarmos aquela ideia, significa também que somos complacentes com uma noção de escola exclusiva, sem o sabermos. Se a “maioria de nós” vai à escola “ponto”, então, aceitamos que a escola é apenas de e para alguns: a escola é um espaço público, mas exclusivo, a que apenas uma “maioria” acede. Eis a exclusividade de acesso a um espaço que se quer inclusivo, em especial, a sala-de-aula. Uma escola que tem como finalidade a inclusão torna-se, assim, uma escola exclusiva.
Poderíamos, então, reformular: “Acordar e ir para a escola não é natural para a maioria de nós”. Para a “maioria” de “nós”, os sistemas desenvolvimentais, juntamente com um ou vários mentores disponíveis, alinham-se de tal maneira que fomentam a trajetória de frequência escolar consistente – eis o facto “natural”. O que me leva a questionar o “natural”? O cenário que encontrei ao serviço do Agrupamento de Escolas do Cerco no Porto (AE Cerco), enquanto Mentor Teach For Portugal (TFP) que colaborou no projeto Escolas Vulneráveis, em articulação interinstitucional entre o AE Cerco, a Câmara Municipal do Porto e Instituições da freguesia de Campanhã.
A expressão de absentismo escolar precoce marcou-me. No 2.º período do ano letivo 20/21, na Escola Básica do Cerco, observava-se que 36% dos/as alunos/as não foram avaliados/as, devido ao elevado número de faltas. No final do ano, 30% dos alunos/as acabaram retidos. Estes números revestem-se de propriedades específicas: as crianças contidas naqueles 36% são todas ciganas, à exceção de uma. Significa que todas as crianças ciganas da escola estão em absentismo escolar? Não, a escola tem, em termos numéricos, uma maioria de alunos/as ciganos/as, aproximando-se dos dois terços. E, apesar da maioria dos/as alunos/as que não foram avaliados/as por absentismo serem ciganos/as (97,2%), uma percentagem substancial de alunos ciganos não esteve nessa situação (44,4%). Significa que a concentração espacial de absentismo escolar tem um contexto específico a montante: o fenómeno de concentração no espaço de alunos/as ciganos/as – uma segregação racial proveniente de uma história de políticas sociais e económicas de “concentração”, do nível micro ao macro. Estas crianças em absentismo não aprendem nem de forma consistente nem significativa, com consequências para o seu futuro a curto, médio e longo-prazo. Há uma série de fatores, cuja interação complexa está na base deste fenómeno.
Foi este panorama que levei ao Human Rights Office (Europe Region) da ONU, em outubro de 2021, pois é necessário repensarmos as estratégias de intervenção sobre o fenómeno, em várias escalas e instituições, de modo a garantir o cumprimento dos direitos das crianças e dos direitos humanos em geral e a prevenir o anticiganismo sistémico – uma vez que esta situação não é única, encontram-se realidades similares espalhadas pela Europa.
“Se as crianças não estão na escola, onde estão?”. Cedo percebi que estavam ali ao lado. A escola é no núcleo do bairro e uma boa parte deles morava a uns metros da escola. A ideia que surgiu foi simples: sair dos muros da escola, indo diretamente ao encontro delas e das famílias. Quando os sistemas não se alinham ou não funcionam em sintonia, é preciso desenvolver uma intervenção multi-sistémica. No trabalho educativo de rua, os educadores podem acompanhar com extrema proximidade cada criança nas travessias de todos os sistemas de desenvolvimento, conseguindo influenciá-los para se alinharem uns com os outros e com os pontos fortes da criança/jovem. Mas como se “des-fazem” as trajetórias de absentismo escolar?
Foi pensando nessa questão que surgiu o projeto Um Cerco Educativo-Alternativo (1-CEA) que cofundei em 2019 com Licínio Fernandes, mediador intercultural cigano. O foco foi reduzir o absentismo escolar e promover o diálogo intercultural combinando alternativas de ação “extra-muros” e “intra-muros” escolares. Fomos diretamente ao encontro dos alunos e famílias nos seus contextos de socialização com o intuito de conectá-los à escola através de uma presença comunitária de proximidade, na qual a rua se tornou um espaço de aprendizagens e reinvenção dos laços aluno-família-escola-comunidade. Uma das nossas 13 alternativas de ação “extra-muros” foi a sala-de-aula de rua. No espaço público, as crianças e jovens realizavam tarefas escolares sob a nossa orientação e acediam a conteúdos de aprendizagem formal e não-formal duma forma interativa que era imediatamente relacionável com a realidade em seu redor no momento e com as culturas locais. Isto permitia dar sentido imediato às aprendizagens: os bancos, as escadarias de blocos, os passeios, as janelas, o ringue, uma caminhada em movimento, viraram instrumentos e sítios de aprendizagens escolares.
Para compreender o impacto, medimos os níveis de absentismo de uma amostra de turmas e alunos que acompanhámos, antes das nossas ações e depois destas ações, no ano letivo 2020/21. Verificou-se uma redução de cerca de 30% no absentismo escolar das turmas e alunos/as participantes. Por exemplo, em um mês de intervenção, uma das turmas acompanhadas na EB Cerco passou de 50% de alunos/as sem qualquer presença durante a semana, para 8% e 13%. Também realizámos uma avaliação custo-benefício. Numa das turmas da EBS do Cerco com a qual trabalhámos, o tempo adicional que os alunos passaram em aulas após a nossa intervenção foi 70 vezes superior ao tempo que o projeto investiu. Com cerca de 30 minutos investidos em cada aluno/família “extra-aulas” e fora da escola, houve um retorno de mais de 23 horas adicionais de presença em aulas em relação ao período pré-intervenção.
É precisamente das racionalidades científicas, da descrição da metodologia e da evidência dos resultados que trata o livro recentemente publicado pelo Observatório das Comunidades Ciganas do Alto Comissariado para as Migrações. O livro inaugura a Coleção “Projetos e Práticas de Inovação Social”. Os fundamentos e conclusões reconduzem-nos a Bronfenbrenner: podemos agir contra o absentismo escolar através de adultos que se preocupam irracionalmente com as crianças, mas sustentam os seus corações “preocupados” em evidência (científica) que orienta as suas ações.
Se “Acordar e ir para a escola não é natural para a maioria de nós” e se o “não ir à escola” acarreta consequências sérias para o desenvolvimento (e.g. desemprego, crime, problemas de saúde), a escola tem de ter meios para que o criminólogo de rua, o psicólogo de rua, o educador de rua, o trabalhador social, o enfermeiro, o médico e, claro, o professor, de rua, possam nela desempenhar um papel de conexão de sistemas, em equipas de liderança colaborativa. Todavia, a escola não deverá ir à rua para comandar os destinos da comunidade local, isto é, para dizer às comunidades o que devem fazer de si. Se a escola vai para a rua será para potenciar a emancipação e a libertação. Como refere Licínio Fernandes, “A mediação intercultural é importante para a inclusão das comunidades ciganas e a desconstrução de estereótipos nas comunidades maioritárias. Mudar as escolas; falar aos pais sobre a importância da escola para os seus filhos e trabalhar com os próprios encarregados de educação. A mediação é importante para intervimos dentro e fora da escola”. Os dados, estratégias e análises do projeto podem ser explorados de uma forma mais completa no livro.”
Autor: Tiago Lobo-Dos-Santos
Criminólogo e Doutorando na University of Kentucky, representante nacional da Dynamo International – Street Workers Network, Alumni da Teach For Portugal (2019/21) e membro da Direção da União Romani Portuguesa.
Artigo de opinião originalmente publicado no Observador a 24 de Março de 2022, aqui. ‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.