“Eu acompanhei o Carlos (nome fictício) em matemática no 5º ano no meu 2º ano como Mentor Teach For Portugal na escola.
Era muito calado, ficava sempre a um canto ao fundo da sala e ao início era desconfiado mas rapidamente foi começando a sorrir-me com os olhos por cima da máscara.
Apesar de sempre ter vivido em Portugal, ele tinha muitas dificuldades em se expressar, não dizia frases completas nem bem articuladas, e não conhecia o significado de muitas palavras comuns. Também não sabia multiplicar ou dividir. Lembro-me da vez em que me apercebi que ele não conhecia as palavras “subtrair”, “subtração” ou “menos”. Quando lhe expliquei o conceito com dinheiro e falando em comprar pão apressou-se a dizer “Ah! Quitar!”, o castelhano para “tirar”. Apesar de ter estas dificuldades, não estava sinalizado com nenhuma medida especial.
Com os colegas não tinha relação. Embora não tivesse inimizades com eles, também não se identificava com eles.
O Carlos tinha fracas condições de higiene em casa. Não eram raras as vezes que tinha as unhas pretas, roupas sujas, ou que eu visse piolhos, embora alertássemos os pais. Quando chovia chegava molhado à escola pois vinha de motoreta. Dizia-me que quando fizesse bom tempo que vinha de carroça com a prima, que é acompanhada pela educação especial.
Toda esta realidade tornou-se tangível de entender quando visitei o lugar onde vivia. Há 2 anos, o lugar onde vivia ardeu. Ele vive agora numa barraca feita de chapas de metal e chão de terra batida, com praticamente nenhuma mobília, sem luz ou água. Vive com os pais e o irmão, este com necessidades educativas especiais mais acentuadas. A mãe era analfabeta, o pai esteve preso. O Carlos era o prodígio da família.
A verdade é que apesar de todas estas adversidades, o Carlos tem uma vontade inigualável de aprender, de questionar o que não sabe e de cumprir com os desafios que lhe dava. Quando sentia que não estava a conseguir acompanhar, não desistia, dizia-me que estava muito difícil, para que eu pudesse adaptar e dar-lhe um desafio intermédio para lá chegar. Tivesse tido o Carlos o estímulo e o apoio meramente normal de tantos outros alunos no seu desenvolvimento e seria provavelmente um aluno brilhante.
Um dia, numa atividade, os alunos tinham de desenhar a árvore dos sonhos. Na copa escreviam os sonhos que tinham para si e nas raízes o que estavam a fazer atualmente para os alcançar. Na copa, o Carlos escreveu que os seus sonhos eram tirar a carta e estudar matemática.
Senti-me revoltado. Revoltado por saber que há uma grande probabilidade do seu contexto abalroar os seus sonhos e ditar o seu futuro. Lembrei-me que uns meses antes, ao oferecer ajuda para que o aluno pudesse ter acesso aos manuais a que tinha direito gratuitamente foi questionado “se valeria a pena”. Fez-me sentir que não é justo, pois mesmo com tamanhas adversidades, o Carlos continua a ter o sentido de possibilidade, a curiosidade e resiliência para aprender mais. E para, quem sabe um dia, tirar a carta e estudar matemática.”
O nome do/a aluno/a foi alterado e o Mentor(a) que o/a acompanhou preferiu manter o anonimato para respeitar a confidencialidade do/a aluno/a.