O conflito com a funcionária parecia escalar de tom, quando me cruzei com a Lea no hall da escola. A Lea (nome fictício) é aluna do 8º ano. Já tinha ouvido falar dela. Estava muito alterada e, diga-se, até mesmo irascível, consumida por imensa revolta no seu falar, esbracejar e ameaçar. Como é corpulenta, a Lea intimidava quem se metesse ao barulho.
Tomei coragem e, junto com as assistentes operacionais tentámos ajudar a sanar o conflito, mas sem efeito. Reparei que por momentos olhou para mim desconfiada e até avançou para mim em tom de ameaçador. A única saída foi convencê-la a sair perto da funcionária para depois se acalmar. Decidi afastar-me serenamente e dar mais tempo, pois certamente viriam próximas oportunidades para me aproximar da aluna e a poder estabelecer uma relação de confiança com ela.
Passaram dias e a Lea não saía do Gabinete Psicossocial, onde eu estava alocada. Ora vinha contrariada, ora vinha em divagação sem muito propósito, mas a mim, ignorava-me intencionalmente e resmungava em sinal de aviso para eu não me aproximar. Respeitei mais uma vez.
Até que, eis que surge a minha oportunidade. Naquela semana fez tanto frio, que toda a gente ficou engripada, incluindo eu. Encontro a Lea prostrada no sofá do nosso cantinho do aconchego com olhos rasgados em lágrimas. Aproximei-me dela e, sem pensar em como ela é grande, mais alta e mais forte do que eu, segurei-lhe na mãozinha e falei-lhe baixinho, com o mesmo tom com que dou miminhos ao meu pequenote de 7 anos.
– O que foi minha querida! Oh, mas tu estás a chorar!
Nunca imaginei que fosse ter a sua atenção, mas a magia aconteceu. A Lea levantou o rosto e olhou para mim muito triste e chorou ainda mais. Entendi que estava carente e resolvi experimentar dar colinho.
Deitei-lhe a cabeça e perguntei-lhe se estava doente. Ela disse que sim, que tinha gripe.
Perguntei se doía o corpo, disse que não, só a cabeça.
Perguntei se tomou alguma coisa em casa, se já tinha comido, medi a febre com a mão, mas não parecia estar febril.
E enquanto eu fazia esta bateria de exames, vi que olhava para mim com doçura e admiração pelo meu interesse nela. Creio que viu no meu rosto ternura, mas também sentido prático da vida. Sei que percebeu que estava a cuidar dela. Foi então que lhe sugeri que tomasse chá de limão com mel. Olhou para mim sem saber bem a minha ideia.
– Sabes fazer chá de limão? Não? Olha, então vou te explicar: chegas a casa, descasca limão e coloca dentro de um bule de água a ferver. Em 5 minutos fica pronto. Pões uma colher de mel e toma quentinho. Vais ver que te ajuda a ficar bem, tem vitaminas.
Ela olhava para mim intrigada, mas com mais alento. Parou de chorar, mas eu sabia que não iria fazer nada do que lhe explicara sobre chá de limão. No entanto, a minha intenção era outra: mostrar-lhe que ela é importante e por isso estava a cuidar dela. Por saber o quanto é bom termos quem olhe e cuida de nós, então achei que aquele momento era já de si um conforto para o coraçãozinho da aluna Lea.
Para minha surpresa, no dia seguinte, a Lea vem ter comigo ao gabinete e mostra-me um livro que está a ler. Mostra de forma orgulhosa e cheia de si que anda a ler um livro em mandarim, sobre a vida de uma pessoa muito importante. Começa então a contar-me detalhes sobre o livro dela: as 38 cartas que Rockefeller escreveu para o seu filho. Fiquei super curiosa com o livro. Ela explicou-me que comprou o livro mais barato quando esteve na china, pois na Europa é mais caro. Aconselhou-me a procurar o livro, visto que é muito interessante e que sabe que eu certamente gostaria de o ler.
Assim farei, ainda que seja sobretudo para termos mote para deliciosas conversas como entretanto tive oportunidade de ter com a Lea, e para continuar a acender a luz e o poder que ela tem dentro dela.
Como Mentora Teach For Portugal, esta pequena história teve um enorme impacto sobre mim. A minha motivação e força aumentaram, e aprendi muito, sobretudo, que pequenos gestos podem acender luzes nos nossos corações e ligar uma estrela adormecida. Talvez o segredo está em continuar a insistir nas pequenas luzes todos os dias.
A equipa e os Mentores Teach For Portugal desejam um Feliz Natal a todos, com um brilho especial para os nossos alunos, parceiros, financiadores, escolas e professores com que colaboramos!
✍️ Autora: Ana Vaz
Mentora da 4ª Geração Teach For Portugal